Neste domingo, os moradores de Botucatu, cidade do interior de São Paulo, sairão às ruas com seus títulos eleitorais, mesmo que não haja eleição nenhuma. O documento será tirado da gaveta fora de hora para comprovar residência no município, que fica a 240 km da capital paulista, e, assim, receber uma vacina contra Covid-19. Essa vacinação em massa é destinada a adultos entre 18 e 60 anos que ainda não tomaram nenhuma dose contra o coronavírus.
A imunização desse público, de cerca de 80 mil pessoas, servirá para cientistas da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e da Universidade de Oxford avaliarem os efeitos no mundo real da vacina da AstraZeneca, criada justamente pela instituição inglesa em parceria com o laboratório. As doses do produto, produzidas no Brasil pela Fiocruz, são uma doação do Ministério da Saúde, que também vai financiar, com R$ 10 milhões, o sequenciamento genético de amostras colhidas em todas as pessoas que vierem a ficar doentes com Covid durante o período da pesquisa.
Esse grande esforço de genotipagem do vírus incluirá tanto os casos de Botucatu quanto de 12 cidades vizinhas, que serão usadas como comparação para avaliar a efetividade da vacina quanto a adoecimento, necessidade de internação e morte. Tudo isso, explica Carlos Fortaleza, infectologista da Unesp que lidera a pesquisa, permitirá conhecer se o imunizante oferece proteção contra todas as cepas que estiverem em circulação na região ou, se pelo contrário, algumas mutações do vírus podem ser mais perigosas por escapar da imunidade oferecida.
— É uma Serrana maior e com possibilidade de subanálises mais profundas, mas, não há nenhuma competição com o estudo do Butantan, é claro. Pelo contrário, eu mesmo fui vacinado com a CoronaVac — ri o professor, citando a cidade da região de Ribeirão Preto que sediou uma pesquisa semelhante a partir de fevereiro com a vacina chinesa.
Os resultados do trabalho do Butantan, com mais de 27 mil vacinados, são esperados para até o final de maio, enquanto os de Botucatu só devem ser completados em até seis meses. Ambos podem dar respostas importantes para o futuro da vacinação no Brasil e no mundo todo, guiando também uma abertura mais segura, reforça André Spadaro, secretário municipal de saúde.
— Muitas fronteiras estão fechadas para o Brasil com o receio de que as vacinas não sejam efetivas para as variantes, então esse estudo pode trazer uma resposta nesse sentido e eventualmente, a médio prazo, facilitar a abertura de fronteiras. Também pode indicar readequações para a vacina no caso de uma cepa em que não haja uma efetividade adequada. O interesse para isso é internacional — diz o médico.
Tanto é, ele destaca, que a universidade britânica e a Fundação Bill e Melinda Gates rapidamente também acolheram o estudo.
Mutirão de vacinação em um dia só
Na comparação com Serrana, também há diferenças no método de convocar a população. Enquanto a cidade escolhida pelo Butantan vacinou sua população adulta por etapas, com grupos divididos pela região de moradia, em Botucatu a ideia é chegar ao maior número possível de pessoas em um só dia, repetindo a estrutura usada nas eleições, inclusive com a participação dos mesários e da Justiça Eleitoral.
— Algum grau de erro ou mesmo fraude pode ocorrer, mas precisamos tentar controlar isso ao máximo possível. Já previmos em algum grau esse turismo da vacina, mas não poderíamos ter uma invasão muito expressiva, o que até prejudicaria os resultados da pesquisa — explica Spadaro, que complementa que houve o cuidado de bloquear as transferências de título eleitoral para Botucatu desde o anúncio da pesquisa e também pelos próximos 30 dias.
Neste domingo, a expectativa é de chegar a uma cobertura entre 80% e 90% do público-alvo. O restante poderá tomar as doses em até 14 dias. Essa segunda janela de tempo servirá para avaliar a documentação de quem perdeu a primeira chamada por alguma razão, como por não ter o título transferido para a cidade, apesar de viver no município, ou por estar impossibilitado de comparecer por alguma doença. A checagem da papelada será rigorosa, segundo o secretário, feita por advogados que se voluntariaram para isso por meio da Ordem dos Advogados do Brasil.
Receio
Mas esse desafio logístico para evitar fraudes parece até simples perto de outro maior, afirma Spadaro: o de fazer a população não relaxar nas medidas de prevenção à Covid. O problema começou antes mesmo da campanha, ele nota, movido pela euforia e pela falsa sensação de que a cidade em breve voltará à vida normal.
— Nesta semana mesmo [anterior à vacinação] estamos com uma previsão de aumento de casos de 30% a 40% — conta. — Estávamos tendo 60 casos, em média, por dia, mas nos últimos três dias já tivemos mais de cem novos casos por dia. Fechamos a semana epidemiológica anterior com 367 casos e nesta devemos fechar com um número entre 500 e 600 — alerta.
Esse erro de relaxar antes da hora (a proteção mais forte contra a Covid só é esperada pelos pesquisadores depois de três ou quatro semanas da segunda dose da AstraZeneca), ironicamente, pode inclusive produzir um efeito contrário ao desejado, diz Spadaro.
— Isso pode trazer até um aumento de casos, internações e óbitos aqui em um primeiro momento.
Botucatu também não terá medidas diferentes de reabertura da economia tão cedo, ainda que o período de imunização já tenha passado. Mudar as características da vida na cidade seria até um erro para o estudo, porque colocaria o município numa situação distintas das cidades que servem para a comparação. Só após seis meses ou mais, avisa o secretário, é que a vida por lá pode ganhar os contornos que os moradores de qualquer lugar gostariam de presenciar.
POR Giuliana de Toledo | OGLOBO